terça-feira, 24 de abril de 2012

Momentos ICAFG - Os textos, parte 3


Durante os momentos ICAFG, a professora Margarida Negrais (da Unidade de Escrita Criativa), lançou várias sugestões para produção de textos alusivos ao tema da alegria, na Rádio, na Literatura e no Cinema. Do conjunto de textos recebidos, hoje vamos publicar um poema e uma prosa da aluna Isabel Sousa Ribeiro.





Um mal nunca vem só


  Camila bateu com a porta, furiosa. Cá fora sempre se respirava um ar menos bafiento. Desceu a calçada correndo em passo miúdo, retirando de dentro da blusa o comprido colar que tinha comprado às escondidas da irmã, na última vez que tinha ido ao Porto.
Desta vez ela havia de se arrepender da sua mania de comandar as tropas lá em casa: era um autêntico comandante desde que o pai morrera.
Já para o fim da vida, era com grande esforço que o pai as levava ao Clube ou a algum serão em casa dos poucos amigos que tinha, na esperança de casar pelo menos Teodora, de feitio muito parecido com a tia que morrera solteirona.
 Não houve pretendente que se chegasse nem a uma nem a outra! Também não admirava, severo como era, não as deixava pôr um pouco de ruge ou de batom, muito menos usar um lenço mais vistoso, por achar que esses artifícios eram para “aquelas senhoras”; as pobres meninas andavam vestidas como se fossem noviças, sem graça nenhuma.
Quanto aos rapazes, esses fugiam todos para a cidade, para tomarem conta dos negócios dos pais. Uma vez lá, num ambiente todo virado para as novidades, era difícil terem vontade de voltar para a província, muito menos pretendiam tão cedo casar.
Quando o pai morreu, Teodora, a mais velha, tomou para si a responsabilidade dos pertences da família, como se tudo tivesse surgido por obra e graça do seu esforço, como se tudo fosse seu. Possuía uma voz possante, o cabelo apanhado em puxo largo, peito empinado com decotes subidos de peitilhos de renda.
 Em trombone, mandava em toda a gente, esticava a sua mão gorda, apontava o dedo de anel de uma pérola só, regendo a criadagem, para cima e para baixo, na quinta, na casa e na cozinha! Sempre de mau humor, lamentava sozinha, pelos cantos, a sua má sorte de ter ficado solteira. Mas pensando melhor, não era agora , de rédeas na mão, que estava para aturar um marido!

O comboio apitava já na curva do rio, ainda dava tempo a Camila para o apanhar na estação mais lá abaixo, que, com o início da primavera, enchia os seus canteiros de flores.
O vento fresco batia-lhe na face e fazer-lhe-ia esvoaçar os cabelos se já os tivesse cortado à “garçonnette”, como se usava na cidade. Aos poucos se iria transformar numa dessas mulheres modernas que vinham na revista “Modes et Travaux”que tinha comprado no mês anterior. A irmã iria ver quem mandava nela!
O comboio serpenteava ao longo do rio. Encostando languidamente a cabeça no vidro da janela, Camila olhava nas águas calmas o reflexo das vinhas da paisagem, ia dormitando embalada pelo andamento lento do trem. Entre o dormir e o acordada, ouviu um marulhar de vozes masculinas que a despertaram dos seus pensamentos sobre nada.
A boa disposição inundava a carruagem de vida e de alegria; os rapazes, ou melhor, os homens, vestiam desportivamente, um ou outro trazendo a bolsa da raquete de ténis na mão. Assobiavam e cantavam, o que diziam ser a novidade passada na rádio nos últimos dias. Camila não resistiu, batendo as palmas no fim da canção. Logo um deles tirou o chapéu e lhe fez uma grande vénia. Ela riu… era bem apessoado!
Continuando nos seus pensamentos, Camila decretou que já estava farta de tocar as mesmas peças de Mozart, todos os dias, ao cair da tarde de bordados e cochichos com as amigas. Tomou uma decisão: saiu do comboio, subiu a rua 31 de Janeiro até à casa das músicas do sr. Moreira. Por muita sorte encontrou o que queria, a editora Sasseti tinha mandado para o Porto alguns exemplares.
Camila comprou a partitura e enfiou-a na bolsa grande  que levava sempre que ia à cidade e foi tomar um chá à Brasileira,  antes de se decidir a ser “garçonnette”.
Enquanto segurava a chávena, com dois dedos e o mindinho espetado, como mandava a etiqueta, deu uma vista de olhos pela partitura: verificou que lhe seria difícil acertar nos tempos da canção e jogar o piano com a letra. Mas tudo há-de ter uma solução! Foi então que lhe surgiu finalmente uma brilhante ideia: comprar uma telefonia! O pessoal da rádio, com certeza tinha contratado os artistas espanhóis para repetirem o show por vários dias! Ouvindo muitas vezes, já conseguiria tocar e cantar a “lindíssima Amapola”e quem sabe, chegar às falas com aquele que a saudou com o chapéu, lá no comboio.
Camila pagou o chá, verificou se o dinheiro que tinha trazido do seu mealheiro secreto era suficiente e decidiu atravessar a Praça até à rua do Almada. Encontrou logo a loja com o artigo  que queria. Discutiu a qualidade do receptor, o tamanho e o preço, tratando também que lhe arranjassem um moço de fretes, que estivesse às cinco horas na estação com a encomenda.
Desceu um pouco a rua e parou hipnotizada em frente de um novo cabeleireiro, cheio de fotografias da Greta Garbo, que parecia ter saído de uma revista de Paris! Entrou cautelosamente, mas logo pediu que lhe cortassem o cabelo à “garçonne”, enquanto lhe pintavam as unhas e a boca de vermelho.
Foi um instante! Clientes tão corajosas havia poucas! Saltou toda contente da cadeira. Verificou outra vez o dinheiro. Estava tudo a correr como o previsto.
 Ao sair da porta, olhou para os lados para ter a certeza que ninguém estava a vê-la, enrolou duas vezes a saia na cintura, ficando com os joelhos à mostra, prontinha para ir comprar uns sapatos de tira, de salto alto. Respirou fundo!
 Quem dera que no comboio fossem os mesmos passageiros da vinda! - pensou.
Estava com fome, mas agora não convinha estragar a pintura e também já não tinha muito tempo, mesmo porque tinha de andar mais devagar não fosse o salto enfiar-se nalgum buraco da calçada e partir-se em dois.
Já estava na hora da partida. À porta da primeira carruagem estava o moço à sua espera com a telefonia embrulhada em papel grosso, atado com um cordel, à maneira de mala com pega.
- Ó rapaz, não me deixes cair a encomenda!
- Não se exalte a senhora que isto está bem amarrado.
Exaltada estava realmente a Camila, que não via os fanfarrões ali por  perto.
A viagem correu sem graça nenhuma, o rapaz a dormitar, ela a engendrar a melhor maneira de meter em casa o embrulho sem a irmã saber. Nestes pensamentos e com a lentidão da marcha, e apesar dos apitos do comboio, Camila ia deixando passar a estação onde devia sair. Foi aos tropeções, entre as gigas vazias que as lavradeiras tinham deixado perto da porta, que saltou do comboio levando a reboque o moço estremunhado.
Pelo caminho, antes de chegar a casa, ainda ouviu uns assobios do rapaz da bicicleta, que levava a mercearia a casa dos clientes ricos. Este incidente fez com que começasse a ferver por dentro, ainda por cima, os sapatos começavam a magoar-lhe atrás, no calcanhar.
 Remexeu na bolsa, procurou bem no fundo, de um lado e do outro e não encontrava a chave que tinha surripiado no dia anterior à noite. Já nervosa, tocou com toda a força a sineta do portão, começando logo os cães a ladrar que chatice! Camila começou a remoer impropérios. E se a irmã ouvisse?! Os Impropérios e a sineta?! - pensou.
O portão abriu-se num repente e o rapaz, encostado e distraído, desequilibrou-se e caiu no chão, agarrado ao embrulho, protegendo a encomenda como se fosse um tesouro. Por sorte andava por ali o caseiro que atendeu à porta. Mas a paz não durou muito, não durou mesmo nada! Ao entrar pela cozinha e despachado o moço, pé ante pé, Camila carregando a telefonia, seguiu em direcção à salinha…
- Mas que pouca vergonha vem a ser esta?! - gritou Teodora, surgindo grande e medonha por detrás do cortinado, do fundo do corredor.
- Aaa?! Pouca vergonha?
- Que trazes aí embrulhado?! Que andaste a comprar sem minha ordem?! Com que dinheiro?!
 Camila, furiosa, para responder à irmã, exibe o sapato batendo com o pé no chão.
- Ai, que me dá o chilique! Tenho uma “daquelas” em minha casa! – Dizendo isto, Teodora, que se tinha encostado à parede com o choque do que estava a ver, deslizou devagarinho e caiu redonda no chão.
Aos gritos de Camila logo acorreu a criadagem, dando os sais a cheirar à desmaiada que, arrebitando com tão eficaz tratamento, continuou a discussão, voltando à carga;
Que trazeis aí nesse embrulho? (Do resto conversamos depois). Dizei-me? Onde andastes a gastar o nosso dinheiro? – Em ocasiões como estas gostava de falar mais caro, para dar respeito à situação.
- É uma telefonia. – diz já calmamente Camila, pensando adocicar a irmã com os modos e com a rádio.
- Uma te-le-fo-ni-a?! Estais doida ou quê?!
- É para ouvirmos as notícias… o que se passa no mundo…
- São só lutas e guerras…E saber disso é bom?! Mais vale estarmos na ignorância dessas coisas. – retorquiu Teodora.
- Ah! Mas tu não sabes?! E a Música?! Os melhores cantores dão shows nos estúdios da rádio e tu podes , ao mesmo tempo, ouvi-los na minha telefonia.
- Eu já disse que não  quero nada disso aqui nesta casa!
- Olha, até podes aprender uma música que eu ouvi cantar no comboio, até já comprei a partitura… chama-se “Amapola”
- Deixe cá ver isso! – Teodora arranca dos braços da irmã a telefonia, vai para a desembrulhar com as suas mãos sapudas, (tão diferentes das delicadas da irmã) e ninguém percebeu como, meio papel posto, meio papel tirado, desliza o aparelho como numa corrente de ar,  pela janela fora, indo parar aos pés do finguelinhas , moço de recados, que se deitara na eira a dormitar, à espera da hora do comboio que o levasse outra vez para o Porto.
- Com este outro susto é capaz o rapaz não escapar! – exclamou Camila incrédula.
Vão as irmãs a correr, mais as criadas ajudar o que afinal de rapaz era um menino, de tão magrinho que era. O sabido abriu um olho só, a ver a situação, percebendo que meio morto seria a solução: teria uma boa refeição, dormiria em bom colchão.
Desfeita vai para casa, Camila pela verdura: já descalçara os sapatos, a saia tinha descido e esborratara-se-lhe o batom… desgrenhada é que não estava, com o seu novo corte à “garçon”.
Teodora, à sua frente, transportava debaixo do sovaco, os restos do desembrulhado rádio, o fio arrastando sinuosas lagartixas no chão. Desapareceu atrás da cortina, do corredor que conduzia às saletas e aos quartos.
Abatida, Camila aspirou o perfume das rosas que trepavam para a janela. Sentou-se ao piano. Puxou a sua bolsa grande, pegou na partitura que tinha comprado no Porto e quando se preparava para tocar, começou a ouvir trautear a “lindíssima Amapola”! Primeiro ao longe, depois mais perto…
- Seria o rapaz do comboio que lhe invadira a quinta, para lhe fazer uma serenata? – pensou suspirando. O coração batia-lhe no peito, na boca, nos ouvidos… correu à janela de mãos estendidas de alegria… Surpreendeu-a a quietude que reinava no jardim.
A música agora mais alta, ia enchendo o corredor até transbordar na sala… “Amapola, lindíssima Amapola, não sejas tão ingrata …” e Teodora, que vinha a empurrar aqueles sons todos, com a sua figura gigantesca , berrou com a sua voz de trombone:
- Não tem serventia nenhuma, mas já está! Já funciona! Eu bem dizia que devia ter nascido homem!

                                                                                                                                            Isabel Sousa Ribeiro
11/04/12

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